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Memórias de Humberto de Campos e "memórias" do pseudo-Humberto de Campos

(Autor: Professor Caviar)

Não custa aqui compararmos a obra original de Humberto de Campos e a suposta obra espiritual sob seu nome, porque assim provamos o quanto as duas apresentam irregularidades muito grandes entre si.

O Humberto de Campos que esteve entre nós tinha escrita ágil, bem feita, descontraída. Raramente alongava demais nos parágrafos, mas a leitura dos mesmos não era pesada. E a linguagem era impecável e constantemente dotada de senso de humor.

Já o suposto espírito revela um estilo totalmente diferente. Melancólico, com escrita pesada, um apelo igrejista descomunal, e constantes vícios de linguagem. A obra "mediúnica" trazida por Francisco Cândido Xavier indica uma leitura cansativa e entediante, até mesmo para quem é tomado pelas paixões religiosas que resultam na idolatria cega ao "médium".

Aqui temos, como exemplos, um conto do livro Memórias, de 1933, chamado "Brinquedo Roubado", no qual se observa o natural senso de humor do escritor maranhense. Exibimos o texto primeiro e, depois, vem o texto "espiritual", "A Palavra dos Mortos", que o suposto Humberto lançou no livro Palavras do Infinito, de 1936. A diferença cronológica é pequena, mas a textual se comprova imensa. Leiam com atenção apurada e sem paixões religiosas.

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O brinquedo roubado

Humberto de Campos - Extraído de “Memorias”, 1933

A nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para Parnaíba, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na formação do meu caráter. Eu reconhecia intimamente a inferioridade da minha condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do necessário e do supérfluo, doía-me o tratamento que me davam, quando era encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procuras se estabelecer o contacto do meu coração com o mundo, ia se formando na minh’alma um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as desigualdades estabelecidas pelo Destino.

Foi a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu espírito a extensão daquela injustiça.

Eu fui um menino que não possuía, parece, jamais, um brinquedo delicado. É provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança desse gênero. Mas eu perdi aos seis anos, e, depois órfão, minha mãe não podia dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou no da minha irmã, seu brinde consistia em servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete” sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia, comíamos em pires, elevados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que enchia um pequeno vidro, dos de Xarope de Cambará. Minhas distrações de infância, desde que chegamos a Parnaíba, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel, que eram o maior encanto das minhas tardes vadias, ás vezes, quando encontrava um lápis ao alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas árvores à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta. Houve, também, uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se voltaram para os carretéis de linha. Cheguei a possuir cerca de duzentos, brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos comandados pelos generais, que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiro de artilharia, ora de um lado, ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis: entravam em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Nepote no mundo dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos grandes capitães. Terminadas, porém, as lutas a que os submetia, eu enfiava os meus dois exércitos em um barbante e pendurava-os nuns pregos do alpendre. Fazia, em suma, com os meus soldados, o que fazem com os seus os políticos, depois de servidos... Todos meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de menino pobre. Nenhum vinha da loja.

É de imaginar, pois, o alvoroço íntimo que me assaltou quando, um dia, tive sob os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oito anos e estava, com minha mãe, em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir no estabelecimento comercial de Pires Almeida & Cia, que ficava próximo, alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios — um sortimento capaz de revolucionar Liliput. Custava 400 réis cada um.

Olhos ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequeno. Ninguém se lembrou de mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu que ali estava um menino órfão, mas infeliz que as outras crianças, e que, por isso mesmo, precisava, mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira da sala de jantar, enquanto ia no interior da casa.

Quando ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se eram os outros brinquedos que me atraíam ou se era o remorso, a consciência de culpa, que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados á loja, o comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão.

— Ficaram com dois, — informou a criada, entregando os oitocentos réis.

— Dois, não; três... — declarou o dono da loja.

Recontou os brinquedos e insistiu:

— Falta um... Diga lá que falta um...

Voltamos. O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se voltaram, de pronto, para o menino órfão.

Não me recordo, hoje, que foi o que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás de uma porta. Apanhei, com certeza, a minha surra. Fui apontado, sem dúvida, ás crianças felizes e que tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete, no momento de abrir a caixa.

Foi esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja, que possuía. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa. Festa de alma que se tornou agonia.

E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadoramente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele.

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A PALAVRA DOS MORTOS

Por Francisco Cândido Xavier - Palavras do Infinito - Atribuído ao espírito de Humberto de Campos - LAKE, 1936. Mensagem recebida em Pedro Leopoldo, 27 de março de 1935

Pedem de São Paulo a colaboração humilde do meu esforço para a apresentação de “Palavras do Infinito” que um grupo de espiritistas da Sociedade de Metapsíquica do grande Estado, tendo à frente o eminente amigo Dr. João Batista Pereira, vai lançar à publicidade com o objetivo de fornecer gratuitamente, com a mensagem dos mortos, um consolo aos tristes, uma esperança aos desafortunados e um raio de claridade aos que naufragam, desesperados, na noite escura da dúvida e da descrença em meio às borrascas do oceano tempestuoso da vida.

Existem poucas probabilidades de eficácia no esforço dos mortos em favor da regeneração da sociedade dos vivos. Contudo, as atividades de ordem espiritualista, na atualidade do mundo, constituem a derradeira esperança da civilização. Sou agora dos que vêem de perto o trabalho intenso das coletividades invisíveis pelo progresso humano; sinto ao meu lado a vibração luminosa do pensamento orientador das sentinelas avançadas de outras esferas da evolução e do conhecimento e reconheço que somente das concepções do moderno Espiritualismo poderá nascer o novo dia da Humanidade. E embora a negação sistemática dos homens diante dessas realidades consoladoras, os túmulos vêm deixando escapar os seus profundos e maravilhosos segredos, falando a sua palavra tocada de conforto e de claridades sobrenaturais.

Na Antigüidade egípcia, figurava-se o santuário da verdade ao fim de uma estrada sinuosa, rodeada de esfinges representando os enigmas das suas essências profundas; e no seu estranho simbolismo essas imagens constituíam as esfinges da Morte, cujos umbrais de silêncio e de treva a Vida jamais poderia transpor para solucionar os problemas inextricáveis dos destinos e dos seres.

O tempo, todavia, modificou a mentalidade humana, adaptando-a para um conhecimento melhor de si mesma. Em meados do século passado, quando o materialismo atingia as suas cumiadas, na expressão filosófica dos pregoeiros e expositores, eis que os mortos voltam a confabular com os vivos sobre a sua maravilhosa ressurreição.

A esperança volta a felicitar a mansarda dos pobres e o coração dos oprimidos na prodigiosa perspectiva da imortalidade através de todos os mundos e os desencarnados, num heroísmo supremo, volvem aos centros de estudos e aos gabinetes dos sábios com a lição piedosa das suas experiências.

Não obstante a arrancada gloriosa dos que já haviam partido das substâncias poderes da Terra para as esferas luminosas do Céu, tentando, com os seus exércitos de arcanjos, reorganizar a sociedade humana, restaurando os alicerces do Cristianismo, poucos foram aqueles que ouviram as suas trombetas ecoando no vale das lágrimas e das provações. 

Diante desse fenômeno universal, a religião não pôde volver dos seus interesses e da sua intransigência para identificar a espiritualidade dos seus santos e dos seus antigos reformadores; a ciência acadêmica, por sua vez, conserva-se de guarda ao seu passado e com as suas conquistas de ontem presume-se na posse da sabedoria culminante.

Entretanto, o dogmatismo é incompatível com o progresso, e todas as concepções cientificas de cada século se caracterizam pela sua instabilidade, porque os olhos da carne não vêem o que existe. Nenhuma teoria pode explicar a vida à base exclusivista da matéria.

Todos os fenômenos mecânicos do Universo obedecem a uma força inteligente e nada existe de real diante da visão apoucada dos homens, porque as verdades profundas se lhes conservam invisíveis.

Os movimentos planetários, os turbilhões atômicos no complexo de todas as coisas tangíveis, inclusive o seu próprio corpo, o mistério da força, os enigmas da aglutinação molecular, o segredo da atração, a identidade substancial da energia e da matéria, que nunca se encontram separadas uma da outra, não se mostram aos olhos humanos dentro da sua transcendência e da sua grandeza. Todo átomo de matéria tem a sua gênese no átomo invisível, de natureza psíquica.

Raios impalpáveis e ocultos trazem a vida e trazem a morte. E o homem, na sua ignorância presumida, mal se apercebe que é o fantasma cambaleante de Édipo, vivendo na zona limitada do seu livre-arbítrio, mas submetido às leis de bronze do destino e da dor, cujas atividades objetivam o aprimoramento de sua personalidade; apesar da sua vaidade e do seu orgulho, todas as suas glórias materiais caminham para a morte.

Nietzsche arquiteta com Zaratustra a filosofia do homem superior para cair aniquilado sobre o seu próprio infortúnio. Napoleão, depois das lutas prestigiosas que lhe granjearam a admiração universal, recolhe-se em Santa Helena para meditar nas célebres sentenças do Eclesiastes. Édison, após encher de conforto as cidades modernas com a sua imaginação criadora, sente o esgotamento de suas forças físicas para aguardar o gume afiado da morte.

Os homens, com todos os pergaminhos de suas conquistas, viverão sempre no círculo de suas fraquezas e de suas misérias, enquanto não se voltarem para o lado espiritual do Sofrimento e da Vida.

A manifestação das atividades dos mortos não lhes tem fornecido as conclusões de ordem moral que se fazem necessárias ao aperfeiçoamento coletivo; com algumas honrosas exceções, despertou apenas o sentimento de suas análises, nem sempre orientadas no propósito de saber, para serem filhas intempestivas das vaidades pessoais de cada um.

Disse Ingenieros, nos seus estudos psicológicos, que a história da civilização representa apenas o desenvolvimento da curiosidade humana. Se isso é um fato incontestável, não é menos verdade que essa sede de revelações deve possuir uma bússola espiritual nas suas longas e acuradas perquirições do invisível. Muita experiência trouxe do mundo para acreditar que as teorias, só por si, possam operar a salvação da humanidade.

Elas constituem apenas o roteiro de sua marcha onde os espíritos de boa vontade vão conhecer o caminho. São acessórios do seu esclarecimento sem representarem a compreensão em si mesmas. Toda a civilização ocidental fundou-se à base do Cristianismo; todavia o que menos se vê, no seu fausto e na sua grandeza, é o amor e a piedade do Crucificado. A atualidade está cheia de exemplos dolorosos. Povos considerados cristãos preparam-se afanosamente para as lutas fatricidas.

A Liga das Nações, que alimentava o sonho da paz universal está hoje quase reduzida a uma abstração de ideólogos. A Itália e Alemanha expansionistas empunham a espada do arrasamento e da destruição. Ainda agora o general Ludendhorf acaba de entregar à publicidade o seu livro terrível sobre a guerra total.

A crença e a fé não procedem de combinações teóricas ou do malabarismo das palavras e dos raciocínios. É no trabalho e na dor que se processam e se afinam. Para a Fé não há melhor símbolo que o toque de Moisés sobre as rochas adustas, fazendo brotar o lençol líquido das águas claras da vida. Só a dor pode tocar o coração empedernido dos homens e é por isso que a lição dos mortos servirá somente para constituir a base nova da sociologia de amanhã.

A fé, por enquanto, continuará como patrimônio dos corações que foram tocados pela graça do sofrimento. Tesouro da imortalidade, seria o ideal da felicidade humana se todos os homens o conquistassem, mesmo nos desertos tristes da Terra.

Um grande astrônomo francês, inquirido sobre as recompensas do Céu, acentuou:

“Mesmo aqui podem as criaturas receber as recompensas do paraíso. O Céu é o infinito e a Terra é uma das pátrias da Imensidade; todos os homens, portanto, são cidadãos celestes. É aqui, na superfície triste do mundo, que as almas realizam a aquisição de suas felicidades. Estamos em pleno céu e em toda à parte veremos cada um receber segundo as suas obras...”.

Sobre as frontes orgulhosas dos homens pairam os órgãos invisíveis de uma justiça imanente e sobre a terra pode o espírito fazer jus aos prêmios do Alto. A crença com os seus esplendores subjetivos, é um desses maravilhosos tesouros.

Que as palavras do infinito se derramem sobre o entendimento das criaturas; cooperando com a dor, elas descobrirão para o homem as grandezas ocultas de sua própria alma, a fim de ele aceite, em seu próprio beneficio, as realidades confortadoras da sobrevivência.

A voz do além pode ficar incompreendida, mas os mortos continuarão a falar para os vivos, comandados à ordem de Alguém, que está acima das opiniões de todos os cientistas e escritores, encarnados e desencarnados. Foi a piedade de Jesus que abriu as cortinas que velavam os mistérios escuros e tristes da morte e o Divino Jardineiro conhece o terreno fecundo onde germinam as sementes do seu amor.

Os homens aprenderão à custa das suas dores, com todo o fardo de suas misérias e de suas fraquezas e as palavras do infinito cairão sobre eles como a chuva de favores do alto. Que elas se espalhem nos corações e nas almas, porque cada uma trás consigo a claridade de um sol e a doçura de uma benção.

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